segunda-feira, 4 de maio de 2015

RAMOS


(Rodney Smith)



0 – Não estamos em Paris ou Barcelona, estamos em Maceió. 1 – E recordar isso é muito, muito importante. 2 – Uma vez fui abordado por policiais em um café por estar escrevendo. 3 -  – Pensavam, disse o policial, que eu mapeava o lugar: Os funcionários achavam que você estava marcando a saída, a entrada e os pontos cegos (onde não havia câmeras de seguranças) do local. 4 – Foi a maior glória literária que tive até a presente data. 5 – Continuei indo até o café depois disso por algum tempo. 6 – Afinal, é como disse Federico Fellini numa entrevista: “É mais fácil ser fiel a um restaurante do que a uma mulher”. 7 – Continuei cliente, mas um cliente ágrafo. 8 – Ou seja, um cliente sem lápis e papel, que sequer puxava assunto com os garçons ou com outros clientes. 9 – Uma tarde, com receio de que me denunciassem outra vez, parei de freqüentar o Café do Medo. 10 – No dia da abordagem, o policial que veio até minha mesa e pediu que eu o acompanhasse até a calçada chamava-se Ramos. Sargento Ramos. 11 – Achei justo, coerente e até sensível da parte deles que tivessem mandado algum parente de Graciliano Ramos para abordar um escritor em Maceió. 12 – Como disse, estamos em Maceió, não em Paris, Buenos Aires ou Barcelona e escrever, assim como ler, observar o ar ou mesmo respirar é algo perigoso. 13 – O Sargento Ramos perguntou se eu era escritor e falei que não. 14 – Então você estava escrevendo o que? Ele quis saber. 15 – Uma carta, respondi. 16 – Carta? E entendi que embutido nessa repetição estava a lembrança de que estávamos também em 2015 e que já haviam inventado não só o telegrafo, como também o correio eletrônico e as mensagens de celular e as videoconferências. 16 – Foi mais ou menos a partir desse dia que passei a me considerar escritor, mesmo sem livros, mesmo sem obras. 17 – Considere-se algo você também! Pensei em dizer para o Sargento Ramos. 18 – Mas só disse: É, uma carta... 19 – Como estávamos íntimos e estamos em Maceió, Sargento Ramos perguntou para quem era a carta (na hora imaginei que ele ainda me considerasse um bandido, depois vi que era apenas curiosidade). 20 – Falei que era uma carta me candidatando a uma entrevista de emprego e ele aceitou essa, ou fingiu aceitar, embora mirasse aqui e ali, a folha que eu tinha nas mãos; se não me engano ele até me ofereceu uma carona quando falei que morava no Tabuleiro. 21 – Lógico que não aceitei. 22 – Temi virar estatística. 23 – Isso foi ano passado. 24 – Está tarde, passando próximo ao Mirante do Bebedouro, vi Sargento Ramos, em trajes civis, olhando o entardecer na Lagoa Mundaú. 25 – Quando retornei, pelo mesmo caminho, uma hora depois, já escuro, ele permanecia na mesma posição. 26 – Ou morreu sentando. 27 – Ou estava muito próximo de abandonar a policia e começar a escrever cartas e contos vadios. 28 – Ou pensava em fazer tudo num só gesto, realizar sua grande obra: Atirar-se do barranco antes de mirar o vazio durante uma tarde inteira. 29 – Mas isso são conjecturas, devaneios meus, literatura, é claro! 30 – Eu estava atrasado. Não me aproximei para perguntar.

Cid Brasil

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