quinta-feira, 14 de maio de 2015

NINA E RODOLFO


(Odyr Bernardi)



Eram dez da manhã quando cheguei ao trabalho com a imperiosa vontade de ouvir discos de Nina Simone. Queria ouvi-la antes do primeiro café com leite, antes dos e-mails, antes das noticias ruins, das fofocas de trabalho, dos jornais, dos clientes, antes do último chá e de ter de dormir de novo... Fui trabalhar motivado apenas pela certeza de que a vida nos escapa por entre os dedos seja ao som de Calcinha Preta ou de Mozart. No mais, trabalhamos por que é preciso morrer de alguma coisa, tal qual nos ensinou Júlio Cortázar. Seja numa prova de concurso visando o futuro ou as margens do Sena flanando pelo presente a vida sempre parecerá incompleta em qualquer situação. Mas sigamos o exemplo da orquestra do Titanic e busquemos um pouco de classe.

Sobre Nina Simone, assim como tudo que vem abaixo ou acima do céu, sei pouco, muito pouco e é quase um milagre acordar e querer ouvi-la. Segundo o Deus Google, o álbum que escutei pela manhã curiosamente era o primeiro, o debute, de Nina, e se chama “Little Girl Blue”, cuja capa do disco é uma jovem Simone, sentada num banco de um parque como se esperasse alguém enquanto olha para nós, mortais, já sabendo que qualquer espera é inútil. Ainda mais se for a espera do sucesso ou da confirmação de nossos talentos. Estamos no fim dos anos cinquenta, ela é mulher, negra e nascida nos Estados Unidos, portanto, gravar um disco nessas condições (e suspeito que até nas atuais) será sempre algo digno de suspeitas por parte de qualquer artista minimamente sensível. Mas deixemos o sucesso de lado, pois citá-lo ou buscá-lo é sempre imoral, disso sabia Nina Simone. Disso sabe Rodolfo, que é um menino discreto e que gosta de colecionar o que não se pode tocar e também aprecia a arte de encarar os cadarços de seus tênis.

Rodolfo tem 9 anos e é filho de uma amiga de minha mãe e passou a tarde em meu trabalho (trabalho com minha mãe, mas não é tão folgado quanto parece. Ok, em algumas horas sim!). O menino Rodolfo só me dirigiu a palavra em duas oportunidades durante as seis horas que convivemos: Queria saber o que tanto eu escrevia aqui (falei que respondia e-mails) e qual a senha do wi-fi. Até aí nada de anormal, exceto o fato dele não ter celular ou tablet (algo tão comum entre as crianças). Quando falei a senha: vamos_pensar_na_polvora. Ele riu e disse ok. Para que você queria a senha, Rodolfo? Para rir, ele disse, e também por que gosto de saber as senhas das pessoas, algumas são engraçadas. Ah, você coleciona senhas? E Rodolfo disse que era mais ou menos isso, mas que era um pouco difícil de explicar.

Achei interessante, não gosto muito dos gênios precoces que povoam as crônicas, mas Rodolfo é espirituoso e aprecia a solidão. Não conversamos mais, apesar dele dizer que o som que rolava no meu computador era bom.

Cid Brasil

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