domingo, 8 de março de 2015

ELIAS


(Michael Sowa)



Elias, o entregador de jornal que acaba de chegar nessa madrugada, é na verdade o inventor da própria madrugada. Acho que foi Poe ou Wilde ou Marguerite Duras – talvez tenha sido Georges Perec – que disse preferir as madrugadas, pois assim não precisava diferenciar espíritos errantes de pessoas reais. Que outro instante das vinte e quatro, nessa cidade horrendamente quente, Elias poderia pedalar sua bicicleta com calma e fluidez, quase como se flutuasse, sem chamar a atenção, como faz agora. É quase, quase, como se sua bicicleta, ao invés de rodas, tivesse assas e hélices. Confeccionada por algum professor Pardal. 

Fazia tempo que eu não invejava ninguém. Ultimamente, tenho evitado profundamente o esnobismo, não só em meus textos (vide a citação sobre fantasmas atribuída a outros, embora ela seja minha) e nas roupas que visto (vide minha bermuda furada), mas também em tudo que faço. Quero que me percebam cada vez menos. Que me convoquem cada vez menos. Que me peçam cada vez menos a opinião – na verdade, nunca pediram e estou bem assim. Falar de si, que não num diário, sempre soa muito esnobe, sempre. Temo parecer com esses jovens escribas, imitadores de Clarice Lispector, cujo único dom é fazer com que se tenha vontade de ler a Clarice original imediatamente.

Sei que o entregador de jornal se chama Elias porque o porteiro falou seu nome a pouco. Perguntou: Cadê você, Elias? E Elias respondeu que a gráfica agora fica em João Pessoa. Por isso a demora. Coisa estranha, pensei, em João Pessoa? Mal conversaram e Elias montou no seu avião que parece uma bicicleta e se foi. Sumiu na esquina dos meus olhos, que sem querer virar o rosto, com medo de espanta-lo, ou de perceber que Elias era mesmo um fantasma, continuei a olhar para baixo. Entendi, aí sim, o porquê de João Pessoa tê-lo atrasado tanto: É que ele veio de lá voando. Tenho que descer para pegar o jornal unicamente para confirmar a data de hoje, que já amanhã. Duvido que nas folhas trazidas por Elias, além de furtos, mortes e blefes, se noticie que as bicicletas ou os entregadores de jornal andam flutuando por aí.

Agora olho para cima e num truque de transição literária aprendido num livro de Enrique Vila-Matas, que ouviu o escritor francês Jean Echenoz dizer que quando queria ir de um ponto ao outro nos seus livros, sem parecer um açougueiro, punha sempre o personagem olhando para o céu e este, ao ver um pássaro, seguia com a narração “pois assim podia ir aonde quisesse”, e assim pego carona na nuvem igual a uma tartaruga que vejo e vou até minha prateleira e leio o dia em que Maria Rosa – esposa de Campos Lara, os dois, personagens de O Feijão e o sonho, de Orígenes Lessa –, “jogando na cara do marido, com a erudição que as palestras literárias ouvidas ao acaso da miséria do lar, lhe haviam trazido”, disse que poesia não enchia barriga, que não valia nada, pois se até Camões havia pedido esmola, de que adiantava tanto delírio? Para que tanto desperdício de inteligência? E sem nos decepcionar, Campos Lara, responde:

-- Sabe-se que Camões pediu esmola, mas você sabe quem deu esmola a Camões, Maria? 

Sabe-se que os entregadores de jornal não voam, mas será que eles não são mais importantes que as manchetes que trazem? Desde Gutemberg, acredito que sim.

Cid Brasil

Nenhum comentário:

Postar um comentário