domingo, 7 de setembro de 2014

EUCLIDES


(Kelly Nicolaison)



Era uma época estranha na vida de Jasmim. Euclides a conheceu na adolescência, uma época estranha na vida de ambos e de todos, então o melhor talvez seja dizer que quando se conheceram os dois sofriam das agruras causadas pelo excesso de fôlego e da falta de espaço. Que é a mesma coisa que dizer que sofriam por bobagens sem saber que eram bobagens. Desse período, Euclides se lembra de que a melhor coisa que fez foi ter escrito o seguinte poema: “O vestido que ela usa / tão feio / caçoam dela e dele / e eu falo em estilo / em última moda / em Paris / em Milão / do último filme que vi na madrugada / digo que the star usava um igual igual / digo que não ligue / digo que estão é invejando-a / digo que a amo / tão feio o vestido / fui eu que dei”.

Lembra também de como era bom entrar na rua que ela morava depois de caminhar quatro quilômetros – podia ir de ônibus, mas a ansiedade dosada por seus passos compensavam tanto quanto o copo d’água trazido pela mãe de Jasmim, que nem imaginava que eles se descobriam no sofá da sala aos olhos somente do gato Tobias, ou fingia não imaginar, apenas para espreitar a filha rebelde (e pensar isso ruboriza Euclides até hoje). 

Segurando a mão, os olhos e a voz de Jasmim, Euclides ouvia tudo com os olhos, o coração e até com os ouvidos, mesmo que Jasmim falasse para ela ouvir, para o gato Tobias ouvir, para dona Jussara que preparava um bolo infinito na cozinha ouvir, para o pai, na única foto que tiraram, ouvir da estante. Só não falava para Euclides. De e para Euclides já bastava o corpo, julgava ela. Falava em fazer um curso de mágica – quem sabe para alongar os dias e os meses –, em querer montar uma banda de metal, em ser guitarrista (Euclides nunca entendeu por que tocar guitarra vinha depois do sonho de criar uma banda, talvez no grupo ela quisesse exercer outra função), em cursar medicina e ir para os Estados Unidos e ser escritora e ter três filhos.

Só que um dia a preguiça dos gatos termina e as fotos dos que morreram também morrem, nesse dia Dona Jussara ofereceu bolo ao invés de água, e Euclides – a quem a vida reservaria a continuidade do solitário sonho da escrita, um dos tantos que Jasmim abandonou – não entendeu. Talvez tivesse sido melhor atrasar o relógio da sala ou inventar um destino para Tobias, que não a morte, e uma missão para o sogro, que não a covardia, e mais ingredientes que não a falta sal. Jasmim estava cansada de ser ousada apenas no sofá e de falar de um futuro tão longe, Jasmim queria o caminho antecipado pelo gato Tobias e pelo pai, queria o que Euclides, tão parado, não podia dar, queria o que ela, tão agitada, chamava de liberdade. E liberdade, dizem os padres descrentes, só conhecemos uma vez na vida, ás vezes duas, quando morremos e quando amamos, porém o amor de Euclides era juvenil, era um amor de palavras e não de livros – que são a concretude ilusória das palavras. Não era burro, nem inteligente, era igual o bolo, igual a Jasmim: Uma junção de outras faltas. Mesmo assim entendeu o recado e deu um beijo na testa do fim. Deu também uma boa olhada na grama que virava mato. Se ela pedisse, teria cortado naquele dia, talvez até com os dentes. Dali em diante, o verde do desapego seria como a imagem daquele quintal. Só cresceriam dentro de Euclides.

Cid Brasil

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