quarta-feira, 26 de março de 2014

LENÇOL ABACATE



(Anders Brekhus Nilsen)



Até hoje lembro – e me encanto – com a história que você contou de quando era criança e queria tomar sorvete um dia, e que sua mãe abriu um abacate, encheu de açúcar e disse que aquilo era sorvete. E você acreditou.


Não que fossem miseráveis e vivessem passando necessidade, mas sua mãe estava sim na miséria e na pindaíba, só que emocionalmente, a um ponto de não ter pernas para encarar uma sorveteria. Você nunca me mostrou fotos do seu pai, também nunca perguntei como ele era, embora minha curiosidade sempre fora saber o que faz um homem abandonar uma casa com três mulheres bonitas. Espero que tantos anos depois, você não fique com raiva ao lembrar da vez em que te disse estar apaixonado por sua irmã e por sua mãe. Era poesia – uma me lembrava de quando te conheci, a outra me dava esperanças.


Hoje, comecei a ler o Jogo da Amarelinha do Cortázar, você não vai lembrar – nem de mim você lembra mais – que um dia passando numa imitação de livraria (nós imitação de casal) você disse que aquele título era engraçado. E ficou inventando um monte de enredo absurdo para o livro. Ele é sim absurdo, mas tô no começo, nem sei direito do que se trata, mas agente terminou e até hoje também não nos entendo... Agora veio um cara aqui comprar uma carteira de cigarros, “Hollywood...”, “seu troco, obrigado”, pode ser ele o seu pai, branco, cabelos castanhos, o nariz parecido com o teu. “Ei, por que o senhor não voltou para a casa, número 78, do Farol?” Quase perguntei e com isso, voltaria com ele ou só com a resposta dele. Séria um bom motivo não é, para aparecer? Podia, pois ele já se foi. 


Só que... Para que voltar não é? Tem coisas que é melhor deixar lá, com um lençol furado dentro dos armários do tempo que guardam tudo, ainda que por baixo de outros lençóis, ainda que sobrevivam as traças, ainda que nunca mais veja, toque ou sinta algum corpo. Ainda que nunca mais nada...


Agora veio aqui um homem acompanhado de uma moça bem nova. Ela comprou um monte de besteira, ele pagou tudo. Até sorvete. Me chamou de Galeguinho... Eu poderia dizer que achava bonito os dois, se alguma mulher não estivesse em casa sofrendo por causa desse bigode. Se ela estiver buscando outros lábios em outros bigodes tudo bem. Eu a entendo, até porque estou fazendo isso enquanto trabalho, sim, porque a vida acontece nessas frestas de tempo que são o trabalho, a escola, os hospitais, as esperas. Entendo até sua mãe que nunca quis mais saber de homens, entendo até você que não os perdoa e que agora me tem num rol de otários igual seu pai. Entendo até esse cara me chamar de Galeguinho: A paixão faz isso, muda a cor de tudo, até das pessoas.


O passado também. – Melhor ficcionista que o Cortázar, só ele. Ou só o seu pai, que conseguiu inventar uma vida nova para ele longe de você.

Cid Brasil

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